sexta-feira, 30 de outubro de 2015

AO ENCONTRO DO MEU NOME, EM DIA DE ANIVERSÁRIO

AO ENCONTRO DO MEU NOME
(carta escrita para os meus sobrinhos)

               
Sim, é ele; quer dizer, sou eu, o Fernando Jorge.
Se até as fotografias mentem; se até o mais rigoroso dos vídeos mente, o que dizer das memórias? As memórias são todas – mas todas mesmo! – reconstruídas. É essa a condição inerente ao que a seguir vou escrever. Naturalmente.
                Quando a tia Fatinha nasceu, eu tinha 6 anos. Rapidamente percebi por que razão ela se chamava Maria de Fátima – antes, nunca eu (cá está, que me lembre…) me tinha interrogado sobre as razões de alguém ter este ou aquele nome. No caso da menina que nasceu no dia 8 de Dezembro de 1962 (1) nunca precisei de perguntar, as conversas à minha volta, na família, ou fora dela, eram frequentes sobre a razão da escolha do nome da minha recente maninha.
                O tio Zé Manel, esse, também foi fácil perceber por que razões se chamava José e Manuel; também no caso do meu irmão não foi nunca necessário perguntar fosse o que fosse sobre a escolha dos dois nomes.
                Aqui ou ali, no passar dos anos, fui olhando os nomes dos homens da família à procura da razão de ser do meu nome, mas nunca encontrava nada; mas também nunca me preocupei muito em saber, por isso, durante muitos anos, não perguntei nada a ninguém…
                Já crescido – penso mesmo que já psicólogo – dediquei, então, atenção à etimologia do meu nome; e o que encontrei deixou-me muito satisfeito, senti que tinha mesmo a ver comigo! Mas não foi ainda nessa altura que perguntei aos avós por que razão tinham escolhido o Fernando e o Jorge; mais!, quem é que tinha escolhido os dois nomes.
                Treinado que estou a processos de auto-análise, quando procurei perceber por que motivo nunca eu tinha perguntado aos avós fosse o que fosse sobre a origem do meu nome, não demorei a encontrar a razão: no fundo, eu tinha medo de ser associado a alguém fora da família, que eu não conhecesse, e que me deixasse decepcionado.
                Ainda antes de falar do assunto com os avós, um dia, quando almoçava com eles num dos restaurantes da Palmira Bastos (curiosamente, um a que raramente íamos – talvez os habituais estivessem fechados…), o avô Pinto e a avó Lourdes confessaram-me que tentaram que eu não nascesse (eu já contei esta história noutro lado). O tio Zé Manel era bebé pequenino, os avós queriam ter mais filhos, mas não logo a seguir, tão pertinho do bebé que tinham acabado de ter. Assim, tentaram, por processos muito artesanais, que eu “caísse” do ninho da avó Lourdes. Só que eu grudei e agarrei-me com unhas e dentes às paredes do ninho! Resisti a todos os abanões e sacudidelas!
                Lembro-me de ver o avô Pinto dizer, nesse almoço, muito sorridente, qualquer coisa do tipo: “A gente tentou tudo, mas tu não largavas a tua mãe, tu não saías de onde estavas… Então dissemos um para o outro «ele agarra-se assim à vida, ele quer tanto viver, olha, temos de o deixar vir, vamos ver…»”. É claro que comecei por me arrepiar quando os avós me contaram isto, mas logo a seguir um sentimento de profunda gratidão se sobrepôs a esse tão espontâneo arrepio. Eu bem percebi os avós: longe de quaisquer outros familiares, eles bem queriam fruir todos os bocadinhos do primeiro filho… Ainda mal o saboreavam, já tinham de se dividir com um outro; repito, que desejavam, mas não tão cedo. Quer dizer, mesmo antes de nascer fui logo um teimoso, um chato importunador! Eh! Eh!
                Ora, foi só depois de conhecer este “pitoresco” acerca do meu nascimento que, quando me pareceu oportuno, perguntei aos avós por que me tinham posto o nome que tenho, e quem o tinha escolhido. A resposta dos avós (eu tive o cuidado de que estivessem ambos a falar comigo) foi simples: “Olha, por nada, não houve razão especial nenhuma… Fomos nós que escolhemos, esse era um nome de que nós os dois gostávamos, foi só por isso, gostávamos desse nome…” Ainda perguntei aos avós se sabiam alguma coisa, ou se alguém lhes tinha dito alguma coisa sobre a etimologia do meu nome – nada, absolutamente nada, tinha sido só porque gostavam desse nome.
                Acho que os avós não tiveram nunca noção da satisfação que me deram!... Sobre mim não pesava o peso do testemunho geracional, passado de pai para filho; não pesava o simbolismo da profunda crença e devoção dos progenitores. Era como se, após as circunstâncias bem especiais do meu nascimento, eles me dissessem: “É assim: já que quiseste vir e a gente não tinha nada antecipado para ti, olha, sê. Sê o que quiseres ser. Pega neste nome, faz dele o que quiseres. Não te esqueças que é um nome de que a gente gosta, é tudo o que, muito honestamente, muito sentidamente, te podemos dizer e te podemos dar.”
                Quem me conhece sabe como prezo a liberdade de ser quem quero ser. Não tomei a simbologia etimológica do meu nome como objectivos a atingir, como lemas de vida a defender, mas que sinto que encaixa bem com o que tenho tentado ser e fazer ao longo da vida – ai, sim senhor! -, penso que o Fernando e o Jorge com que fui baptizado foram feitos à minha justa medida!
                Os meus pais fizeram-me Fernando Jorge para eu ser o que quisesse ser; apostaram “às cegas” em mim e deram-me a liberdade para ser o que e quem eu quisesse; é como se eles tivesse percebido que, naquele confronto muito perigoso, muito delicado a que, logo que deram conta de que eu tinha aparecido a importunar, me sujeitaram, eu seria capaz de me desenrascar por mim mesmo, tal as ganas que mostrei logo para viver.
                É, meus queridos sobrinhos, é com estas coisas no pensamento que vou, no meu dia de anos, conversar com os avós – agora que estarão outra vez bem juntinhos, e juntinhos irão cantar-me os parabéns. Certamente também, vamos falar e rirmo-nos das peripécias do meu nascimento. Acredito fortemente que nem um, nem outro, estão arrependidos da opção que fizeram, há quase 60 anos atrás. Ah!... E quanto eu lhes agradeço isso!...
                Só falta mesmo, então a etimologia do meu nome, não é verdade? Aqui vai:
                Fernando: Significa "ousado para atingir a paz", ou "o que ousa viajar", "viajante corajoso". O nome Fernando tem origem no germânico Ferdinand ou Fredenando, formado pela união das palavras fridu, que significa "paz", e nanthjan, que quer dizer "ousar", e significa “ousado para atingir a paz”.
                Jorge: Significa "o que trabalha a terra", ou "agricultor". Jorge tem origem no nome grego Geórgios, que deriva da palavra georgós, formada pela união dos termos ge, que significa "terra" e érghon, que quer dizer "trabalho" e significa “aquele que trabalha na terra", "agricultor”.
                De que gosto especialmente no meu nome? Ou, o que penso que o nome tem a ver comigo e eu com ele?
É a ideia de ousadia, de viajar, de procurar a paz; de a cultivar. Comigo, com o nome que quem decidiu que eu vivesse me pôs, nunca o ambiente de paz podre terá qualquer hipótese de se instalar. Por isso me sinto especialmente satisfeito por só tardiamente ter investigado a raiz etimológica do meu nome – é que eu já acumulara experiências de vida bastantes para constatar que toda a vida tenho viajado ao encontro do meu nome: eu procuro, eu ouso, eu revolvo os chãos que piso, os caminhos por onde viajo – os espaços físicos, as relações humanas, os conhecimentos acumulados, as crenças e os preconceitos estabelecidos. Sim, estou em crer que sim, num processo constante para atingir a paz a paz que me faz bem e faz bem aos outros, nunca me acomodando, nunca alimentando que os outros se acomodem em ambições de bem-estar menos saudáveis, menos honestas e menos solidárias. Em mim – reconheço-o, admito-o - haverá sempre um importunador! Ao serviço da paz, lutando por ela.

                É, queridos sobrinhos, gosto muito de ser o Fernando Jorge.

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(1) - A data de 8 de Dezembro está ligada à celebração da Imaculada Conceição, mas o nascimento da minha irmã nesta data é, do ponto de vista da devoção da nossa mãe à Nossa Senhora de Fátima, puramente acidental. À data de 1962, sem as ecografias, só na altura do nascimento havia a certeza do sexo da criança: assim que a nossa mãe soube que estava grávida imediatamente prometeu o bebé a Nossa Senhora de Fátima.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Memórias da avó Lourdes - Como a avó Lourdes conheceu o avô Pinto

Memórias da avó Lourdes
15 de agosto de 2013, quinta-feira, em casa da Tia Fatinha, no Faial

Como a avó Lourdes conheceu o avô Pinto

            - “Sabes como é que eu conheci o teu pai?...” perguntou-me a avó quando estávamos a almoçar. Estávamos, naquela altura, calados num silêncio de pouca duração, tão simplesmente
atrás: Maria de Lourdes, Maria de Fátima, Manuel
à frente: Fernando Jorge, José Manuel
porque não se pode conversar enquanto de mastiga.
Eu sei como foi que esse primeiro contacto aconteceu, mas, como de costume, fiz o meu papel e respondi à avó que não, não senhora, não sabia.
- “Eu estava na costura, na costura de alfaiate, no Alexandre Paulo, e ele [o avô Pinto] foi lá para para fazer um fato [fato civil]… ele entrou, eu olhei para ele, depois voltei-me para as minhas colegas e disse-lhes assim baixinho: «Olhem, eu vou bater-me com este magala!...» Houve uma delas que se voltou para mim e disse em voz alta: «Capaz disso és tu, e muito mais!...» Lembro-me bem dele, era todo jovem, jeitosinho, o cabelo todo onduladinho…»”. A avó estava deliciada a relembrar esta ocasião que marcou definitivamente as suas vidas… e as nossas! – “Eu depois perguntei para elas: «Quem é este?...», e uma delas respondeu-me: «É o furriel Pinto». Eu então chamava-lhe «furrielzito» e, olha, se bem o disseste, melhor o fizeste." A avó estava deliciada! Mais deliciada com as memórias do que com a comida. – “Depois, quando começámos a ir aos bailes, eu dançava muito bem, melhor do que ele… eram sempre tempos bem passados, ao pé de mim nunca ninguém estava triste…”
- “Eu e as minhas irmãs gostávamos muito de ir aos bailes… era no Orfeu e no Sporting… Quem chegava cedo guardava lugar para as outras… Nunca levei sova de cadeira!... A minha irmã Rosinda nunca foi a um baile, ela foi namorada de um só homem… ele tinha saído da tropa e ela tinha 13 anos, treze!... A minha irmã Rosinda, coitadita, não se divertia nada. A minha irmã Beatriz também se prendeu muito cedo ao Titó… A minha irmã Deolinda namorou o Zé Camilo, o Zé ??????, foram muitos Zés, parece que ela tinha uma predilecção especial pelos Zés, e depois não casou com nenhum deles… Foi a que teve mais pretendentes, ela em nova era muito jeitosa e tinha uma coisa muito bem feita… Sabes o que era?...” “Não, dona Lourdes, não sei…” (mesmo que soubesse não diria à avó que sabia!...) Eram as pernas!... Ela tinha uma vaidade grande nas pernas...
A conversa ficou por aqui, alguma coisa apareceu a interromper a conversa. No dia seguinte, em jeito de remate à conversa interrompida, e também à hora do almoço, a avó Lourdes continuou: - “O velhote [o avô Branco] em Abrantes tinha fama de ser mau, mas era muito honesto, todos o respeitavam muito porque sabiam como ele era… Pensas que ele respeitava as freiras no Colégio Nossa Senhora de Fátima?  Pois sim!... Mas elas todas adoravam o senhor António!... Eu não tinha nenhum medo do meu pai, era a única que brincava com ele… O meu pai gostava muito do teu pai, mas o teu pai tinha-lhe muito respeito, só entrou lá em casa já depois de casarmos… Lembro-me que uma vez estávamos a namorar à porta de casa, o meu pai chegou, viu-nos ali chegadinhos um ao outro e perguntou-nos: «Querem o meu capote?». O meu pai tinha um capote grande, sempre teve… Eu não me atrapalhei nada com ele e respondei-lhe: «Não, não é preciso, se a gente tiver frio a gente aquece-se um ao outro!... «Lá descarada és tu!» disse o meu pai, mas foi para dentro bem-disposto e deixou-nos ficar ali à vontade… Outra vez, quando passou por nós, nós estávamos a cantar – é até por isso que ele lhe pôs [ao avô Pinto] o nome do Rapsódia – e ele perguntou: «Mas vocês estão sempre a cantar?...» e eu respondi-lhe logo a rir-me: «Mas quer que a gente se ponha a fazer outras coisas?...»
E o avô Branco lá se resignou e lhe deu a mesma resposta do capote. Como podem ver, meus queridos sobrinhos, não é só os netos que a avó deixa desarmados com as suas respostas; a avó já traz muito treino dos tempos do avô Branco, o seu próprio pai!

domingo, 27 de setembro de 2015

AS VIRGENS BÍBLICAS E A MINHA MÃE

AS VIRGENS BÍBLICAS E A MINHA MÃE

A missa de corpo presente, ontem, na Igreja Matriz da Horta, deu-nos uma muito carinhosa oportunidade de mostrar com limpidez insuperável uma das mais marcantes características da nossa mãe, a Maria de Lourdes.O senhor padre celebrante, quando o momento chegou, fez a leitura do Evangelho. No ritual que os católicos bem conhecem, disse ele, benzendo-se:
«Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus… Naquele tempo, Disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola: «O reino dos Céus pode comparar-se a dez virgens, que, tomando as suas lâmpadas, foram ao encontro do esposo. Cinco eram insensatas e cinco eram prudentes. As insensatas, ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo, enquanto as prudentes, com as lâmpadas, levaram azeite nas almotolias. Como o esposo se demorava, começaram todas a dormitar e adormeceram. No meio da noite ouviu-se um brado: ‘Aí vem o esposo; ide ao seu encontro’. Então, as virgens levantaram-se todas e começaram a preparar as lâmpadas. As insensatas disseram às prudentes: ‘Dai-nos do vosso azeite, que as nossas lâmpadas estão a apagar-se’. Mas as prudentes responderam: ‘Talvez não chegue para nós e para vós. Ide antes comprá-lo aos vendedores’. Mas, enquanto foram comprá-lo, chegou o esposo. As que estavam preparadas entraram com ele para o banquete nupcial; e a porta fechou-se. Mais tarde, chegaram também as outras virgens e disseram: ‘Senhor, senhor, abre-nos a porta’. Mas ele respondeu: ‘Em verdade vos digo: Não vos conheço’. Portanto, vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora… Palavra da Salvação.»
O que nos diz esta parábola bíblica sobre a nossa mãe?
A nossa mãe seria pessoa para ouvir muito atentamente, com muita fé, todas as mais brilhantes, genuínas e legítimas interpretações simbólicas desta leitura evangélica.
Ora, sem que fosse sequer preciso virar costas às homilíacas palavras, ainda estivessem elas a ressoarem aos seus ouvidos, já ela estaria a repartir o seu azeite, fosse com quem fosse que lho solicitasse, fosse qual fosse a quantidade que lhe restasse – tudo, em qualquer altura, que tivesse e que uma alma aflita lhe pedisse, por mais pequenina que fosse a côdea de pão ou a gota de azeite que a minha mãe tivesse, ela dividiria sempre. Primeiro, dividiria, só depois olhava com o que ficava e o que poderia fazer com o que lhe restasse, nunca se arrependendo de dar, a sua preocupação era que não faltasse a quem estivesse aflito à volta dela; se lhe faltasse a ela um pouco, não havia problema, ela seria capaz de aguentar, melhores dias viriam. Nunca ela faria as coisas assim por despeito ou rebeldia contra as lições das parábolas das Escrituras Sagradas – era apenas guiada pelo instinto cego, prontamente disponível, da sua sociabilidade e sentido de partilha.
Recordo agora, com o mais profundo carinho e sentido de gratidão, esta grande lição que ela nos deu. Éramos nós, os filhos, pequenos, eu lembro-me de uma ou outra vez a minha mãe repartir com outros o que eu pensava que era só nosso. Comandado pelo cruel instinto de sobrevivência infantil, que nos manda, antes de mais, bem cuidar de nós mesmos; ou então, já marcado, na catequese, pelo exemplo das virgens prudentes que as catequistas nos mandavam seguir, eu balbuciava um hesitante e aflito “Então, mãezinha, e nós?... Assim não chega p’ra nós!…” A nossa mãe, o bondoso ser humano que era, respondia-me: “Não te preocupes, filho, ainda há que chegue p’ra todos cá em casa…” Tenho memória de uma ou outra vez perceber tensão no rosto da nossa mãe; mas essa tensão não tinha a ver com o gesto de dar, era já ela a pensar como iria lidar a seguir com as dificuldades da vida para que a nós, aos filhos, não faltasse nada. Como sempre fazia, a parte má das coisas, a nossa mãe guardava para ela, poupando-nos por amor.

sábado, 26 de setembro de 2015

Uma pequenina homenagem à avó Lourdes, «uma abrantina de gema»

Meus queridos sobrinhos, que posso eu dizer-vos hoje, marcado pela angústia do futuro próximo, acerca da vossa avó?
(Texto escrito no avião, viagem Horta-Ponta Delgada-Lisboa, 29 de Agosto de 2015)

           
Fiz questão de, à saída do quarto, olhar bem a avó Lourdes, hoje de manhã, em casa da tia Fatinha, depois de me despedir dela. Mais do que nunca.
            A avó pôs os olhos bem fixados em mim, era um olhar tranquilo e carinhoso. A tia Fatinha perguntou à avó se só olhava e não dizia adeus, que ela bem podia mexer a mão direita (afinal, os sucessivos avc's têm-lhe massacrado é o outro  braço, o esquerdo). A avó ouviu a filha e correspondeu ao seu pedido - fez-me um claro aceno de mão, os dedos bem unidos, só o polegar, certinho, a afastar-se um pouco, compondo o aceno bem como ele deve ser feito.
            Mais do que nunca, ou melhor, pela primeira vez senti, pensei, que poderia ser a última vez que visse a avó Lourdes assim, a olhar-me; e eu a olhá-la. Senti muita ternura, muita paz; uma infinita tranquilidade, mesmo que, ao mesmo tempo, desejasse com muita força que não tivesse sido a última vez ali, ao pé dela, a falar com ela. Quero ouvi-la outra vez a dizer-me, ainda de olhos fechados, com o seu típico bom-humor, “Bom dia, Adriano…”, depois de outra vez eu a provocar com o meu sussurrante “Bom dia, Maria Joaquina!”. Quero ouvi-la dizer, ao chegar-lhe, no desjejum, o copo, que “a água passa”, mas que “deixa-me engasgada”; e que “o iogurte não presta”; e que eu, a dar-lhe estas coisas, não devo gostar nada dela. Se gostasse, levava-lhe era pão com azeitonas, ou café e pão com queijo. (1)
            Mas pode muito bem ter sido a última vez que tenha visto a avó Lourdes viva; como muitas vezes ouvi o avô Pinto e os seus irmãos dizerem, “é a lei da vida”.
            Sei o que quero dizer quando chegar o dia que todos nós temos desejado que chegue o mais tarde possível, ou não chegue mesmo; por isso talvez seja melhor escrevê-lo já, que, por enquanto, tenho controlo sobre as emoções, controlo esse que muito provavelmente não terei quando for confrontado com a necessidade, imposta pelo desiderato inelutável, de o fazer:
            Queridos netos da avó Lourdes, a minha mãe não foi, absolutamente, a melhor mãe do mundo; essa, tanto a gente a reclama, essa não é a minha mãe, essa não é a vossa avó. A minha mãe é única! A vossa avó é única! Foi uma criança que viveu a sua meninice de maneira muito intensa, foi uma jovem muito alegre e amiga das suas amigas; foi esposa fidelíssima, foi mãe extremosa; foi avó encantadora e foi ainda ‘bivó’ que fascinou a sua ‘Piriquita’ como mais ninguém.
Em contraste com todas estas coisas bonitas que cultivou ou que encontrou, testemunhei, com a angústia em mim bem presa, mais do que uma vez, o ataque, sobre ela, das maldosas doenças, e a nossa Velhitas sempre brincando - gaiatamente, docemente.
A minha mãe, a nossa mãe, a vossa avó, foi uma mulher notável, que passou por todos os desafios que o ciclo da vida lança a cada ser humano da infância à velhice – passou por eles e venceu-os a todos. A todas as meninas do mundo, a todas as mulheres, a todas as velhinhas desejo eu um ciclo de vida assim – assim se fazem as mulheres únicas que espalham à sua volta alegria, paz, amor e atenção ao próximo; sempre desinteressadamente, sempre com o maior dos desvelos.
            Na profunda humanidade dos seus actos, a avó Lourdes viveu céus, experimentou infernos; todos nós pudemos ser testemunhas da invejável capacidade que teve de fazer calarem-se dentro de si os afectos difíceis e as memórias dolorosas e manter vivos, consoladoramente bem audíveis, os saborosos contrários de todas essas coisas más.
            Numa das últimas vezes, agora neste mês de Agosto, que lhe aconcheguei a roupa da cama, ao deitar, perguntei-lhe: “Então, Velhitas, não tens sono?...” A avó olhou-me com um sorriso meigo e respondeu-me com esta tranquilidade toda: “Não tenho agora, mas quando ele chegar eu vou estar pronta para o receber.”
            É, queridos sobrinhos, a avó Lourdes estava pronta. Agora estará ao pé do seu ‘Nino’ a brincar com ele o saboroso segredo de que só conhecemos a escrita das quatro letras em iniciais maiúsculas – é, o segredo é mesmo deles. Os segredos são assim mesmo - a eles, os deles; a cada um de nós, os nossos. Este de quatro letras, definitivamente, eternamente, é deles, de mais ninguém.
A Lourdes Branco, a minha mãe, a avó Lourdes, a Bivó, vai finalmente poder voltar a partilhar o seu segredo com, como ela dizia, “o meu homem”. Muito doente, neste muito delicado mês de Agosto de 2015, a Velhitas de todos nós confidenciou-me: “Tenho muitas saudades de uma pessoa…” Fingi que não percebi quem era e perguntei-lhe de quem falava; a avó precisava de o dizer: “É do meu homem, o vosso pai…” Finalmente, repito, a avó vai poder voltar a partilhar com o seu homem a cumplicidade daquelas quarto letras, iniciais de qualquer coisa, que só eles os dois conhecem – é, seguramente, o segredo mais puro, mais genuíno, mais bem guardado da família.
Vá, vamos sair de mansinho, vamos deixá-los na intimidade que é deles, que eles souberam inventar para eles mesmos, e a que foram sempre fiéis. Que exemplo para nós todos!
            Beijo grande, Velhitas! Dá por nós um beijo também grande ao Velho! E a todos os familiares queridos que, seguramente, te receberão junto deles com muito carinho, com muita alegria, com muito amor.
Até sempre, querida mãe! Obrigado por tudo o que foste para mim, por tudo o que me deste! Que orgulho tenho em ti! É um privilégio muito grande ser teu filho!


- A minha mãe veio a falecer a 25 de Setembro de 2015, sem que, na verdade, eu a voltasse a ver a olhar-me e a falar comigo.

(1) É claro que a minha mãe me dizia isto com muito carinho, ela sabia que o seu cafezinho e o pão com queijo fresco chegariam pouco depois.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Pedacinho de tesouro, de pai para filho

Pedacinho de tesouro, de pai para filho

O Vítor e o filho. A fotografia já tem alguns aninhos.
O pai é o Vítor e o filho é o... ups!, esqueci-me do nome... :-(
O momento foi testemunhado ontem pelo João; e quem por ele hoje perguntou foi o Marco. Aconteceu, repito, ontem, já depois das oito da noite.
Ainda ontem decidi escrever um apontamento sobre o que aconteceu, mas sem data, sem prazo para o fazer. Ora, o que se passou foi que hoje, a meio da tarde, por um acaso muito feliz, encontrei o Marco (meu aluno de Psicologia há alguns anos) no Chiado, ao pé do Fernando Pessoa; perguntou-me por várias coisas - entre elas, pelas viagens e aventuras. Assim que ele se afastou, decidi: o apontamento iria ser escrito já hoje!

Ei-lo:
O Vítor, eu cruzei-me com ele por acaso no Spacio, nos Olivais; eu estava lá para jantar com o João, meu afilhado, que me tinha desafiado para isso. Ele seguramente certificará a saborosa ocorrência.
Praticamente à entrada, ali ao pé da loja do Pingo Doce, quando nos preparávamos para subir ao segundo andar, reconheci o Vítor a vir na nossa direcção. 
O Vítor vinha com a esposa de um lado e o filho do outro. Velho Traquina (1) - muito traquina mesmo! -, depois de celebrarmos, com um valente abraço, e muito alegremente o encontro, voltou-se para o filho e falou assim com ele: "Lembras-te de eu te falar dum senhor e das viagens e passeios que eu fiz com ele?" E enumerou alguns desses passeios e aventuras. Sim, o filho, ao mesmo tempo que acenava afirmativamente com a cabeça, olhava para tirar as medidas àquele sujeito que, até agora, fora, na sua mente, apenas um fantasioso personagem de memórias gratas do seu pai, do tempo em que o pai tinha a idade que ele tem agora.
E pronto, Marco, é só isto... Mas neste tão pouco há tanto! Há muito mesmo, como tu certamente compreenderás. É claro que imaginas que bem me senti ao ouvir o Vítor e ao ver os olhos do miúdo assim pregados em mim.
É um bem saboroso privilégio este de fazer parte da história do desenvolvimento pessoal de alguém e vermo-nos a fazer parte do que parece ser conversas em casa, em que, pelo simples desfiar de lembranças, conversas de falar de si mesmos, os pais educam os filhos no aconchegante ambiente do lar, em família. É que esta é, muito provavelmente, a mais impressiva forma de educação, na linha do que dizia o meu mestre João dos Santos: "Educar é oferecer-nos como modelos".
Marco, gostei muito de te reencontrar hoje! Que belo abraço! Estás feito um belo moço! (Será do "tratamento" de lama que andas a fazer? ;-) )
Vítor, obrigadinho pela dádiva que me trouxeste hoje! Continuas com o teu tão radioso - e bem maroto! - sorriso.
João, terás consciência que foste o autor deste precioso momento?  Sem o teu convite para jantar o que aconteceu ainda agora estaria por acontecer.
Puto Oliveira, desculpa-me não me lembrar do teu nome! :-/ Tu és a fascinante criança renascida, geração após geração - como o teu pai foi um dia; ele e a tua mãe; a criança que justifica tudo o que fazemos quando nos entregamos à educação das crianças. Por ti e por todas as crianças tudo vale a pena! Grande abraço! E que a gente um dia se encontre numa aventura que depois te apeteça contar aos teus filhos; e aos teus pais, se eles não forem também connosco.

(1) Associado da associação juvenil Os Traquinas da Boa Vida.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

QUE PEQUENO ACASO TÃO SABOROSO !...

QUE PEQUENO ACASO TÃO SABOROSO !...

                Há pouco mais de um ano, de boa-fé, pedi amizade no Facebook a um muito dinâmico músico, que tinha conhecido dias antes, em Miranda do Douro, que colaborou muito empenhadamente num serão musical para os alunos que, com outros colegas professores, levei de Lisboa às terras da Língua Mirandesa. O serão aconteceu no centro de juventude do Barrocal do Douro.
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10152165152198975&set=
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                Ora bem, aconteceu que me enganei… O Pedro a quem pedi amizade não era o Pedro que conheci no Barrocal do Douro. Para além de alguma semelhança física, tratava-se também de um artista musical notável. Com a mesma boa-fé, e muito simpaticamente, o Pedro a quem pedi amizade – e que vive em Dublin, na Irlanda -, aceitou imediatamente o meu pedido.
                Depois de ver o seu mural, descobri o meu erro e logo escrevi ao meu novo amigo Facebookiano: «Olá, Pedro! Pedi-te amizade porque te confundi com o Pedro Almeida, da Associação Lérias. Mas, depois do que vi no teu mural, tenho todo o gosto em continuar teu amigo no Facebook! Um abraço!» E o Pedro, boamente, continuou a ser meu amigo no Facebook. Isto passou-se em Abril do ano passado.
                Hoje caminhei para o Cais do Sodré, como faço regularmente às quartas-feiras; só que, contrariando a escolha habitual do estabelecimento para me encontrar com o meu habitual interlocutor, fui para outro. Hoje eu precisava de um estabelecimento que tivesse acesso livre à Internet. Entrei no primeiro que encontrei, mas mesmo no primeiro!
                Assim que entro, vejo o Pedro – de Dublin! - a dirigir-se à saída do estabelecimento!... Reconheci-o imediatamente e percebi logo que ele também me tinha reconhecido; aliás, penso que a iniciativa do muito cordial aperto de mão foi dele, não minha. Tivemos uma breve troca de palavras, ele regressa amanhã à Irlanda!
                Deixei-lhe um repto para o próximo ano lectivo, para colaborar com as minhas aulas de Psicologia. Aceitou imediatamente! É mesmo um rapaz às direitas!!!
                Gente boa, senhores! É verdade, o Pedro faz jus ao que pensamos da gente boa!
                Que sorriso cordial ele fez quando me viu!
                Felizes circunstâncias: do Facebook ao encontro pessoal directo, com erros e acasos, boa-fé e humor a tecerem a história deste tão singelo relacionamento pessoal.

                Grande abraço, Pedro! Desejo-te todos os sucessos na arte que, pelo que tenho visto, tanto te apaixona e tanto pede de ti!

domingo, 31 de maio de 2015

AS AVÓS, O DR. JOÃO DOS SANTOS E A TERRA DO NUNCA

Psicologia - Frase da semana, 31MAI15: AS AVÓS, O DR. JOÃO DOS SANTOS E A TERRA DO NUNCA


"A casa da avó devia ser sempre a gruta dos mistérios – e não a extensão do ATL.
Aqui há dias, ao dar banho à minha neta mais pequenina, oiço-a exclamar:
Alice Vieira
– Avó, o teu champô cheira a morango!
Perguntei-lhe a que cheirava o champô dela, em casa dos pais.
Muito séria, respondeu:
– Avó, em minha casa, cheira tudo a normal.
A casa da avó deveria ser sempre a “anormalidade”, no sentido mágico da palavra: o lugar onde há lobos por entre os cortinados, onde terríveis piratas se escondem na chaminé da sala, onde as coisas têm cheiros estranhos, onde o passado ataca nas páginas dos velhos álbuns de fotografias, onde há sempre um ombro disponível para uma crise de choro adolescente.
Infelizmente, em tempos de crise e desemprego, as coisas nem sempre são o que gostaríamos que fossem – e às vezes a casa da avó é a creche que não se pode pagar… Mas isso é outro assunto.
Seja como for, é evidente que as avós são essenciais. Recordo sempre o professor João dos Santos quando dizia:
“Uma criança não pode viver sem uma avó e sem uma aldeia. Se as não tiver, é preciso inventá-las.”
Na minha infância, de poucos afectos, tive de inventar ambas."
Alice Vieira, "O livro da avó Alice", Lua de Papel, 2011, pp. 15-16.

Um texto que os meus alunos de Psicologia B entenderão de forma, já que:

  1. Toca a essência da aprendizagem e da avaliação - os trabalhos monográficos.
  2. Dá testemunho da espantosa lógica-inteligência-criatividade das crianças.
  3. Cita o meu mestre João dos Santos.
  4. Mostra, na avó e na aldeia que a escritora Alice Vieira inventou, que a ideia da Terra do Nunca é mais comum do que poderíamos pensar; e tem uma capacidade tremenda de ajudar a que pessoas sofridas cheguem ao Bem-Estar pessoal, e o espalhem também à sua volta.