sábado, 29 de abril de 2006

Amoras em roupa lavada

Ontem ao fim da tarde sentia-me cansadíssimo. Tão cansado que, assim que acabei a última aula, antecipei com redobrada satisfação a ocasião de um jantar de conversa com um bom amigo. Optámos por ir comer grelhados e ele insistiu, já à mesa, que fosse eu a escolher o vinho. A lista era enorme e os preços de alguns eram elevadíssimos. Optei por um que me despertou curiosidade porque provinha de uma região que me trazia recordações agradáveis, a região de Armamar. Não conhecia o vinho, íamos ver o que valia. Além disso, o preço era razoável.
A minha escolha deixou o empregado que recolheu o nosso pedido visivelmente satisfeito, fez um largo sorriso, e fez questão de nos dizer porque ficara tão satisfeito: aquele vinho era da região dele, ele era de Armamar.
Nessa altura dei mais atenção ao rapaz e reparei que ele era muito jovem. Na breve conversa que um restaurante cheio de clientes à hora do jantar permite, trocámos reconhecimentos de sítios que nos eram familiares: Goujoim, Gojim, Travanca…
Talvez tenha sido o sorriso do rapaz que me trouxe à lembrança o Fernando, meu homónimo, rapazinho de família bem modesta que eu conheci em Goujoim há muitos anos. O Fernando não precisa que nada nem ninguém mo traga à memória, recorrentemente ele vem por ele próprio. Na casa da aldeia, a fazerem parte da ambiência familiar que sempre muito acolhedoramente me recebia, eram muitas crianças juntas, todas pequenas, entre irmãos, primos e sobrinhos; com alguns destes mais velhos que os próprios tios. O Fernando, criança e tio, sem o saber, acabou por tornar-se o autor de uma das mais deliciosas memórias de vida que tenho.
Foi assim: nós tínhamos chegado a Goujoim na noite do dia anterior, um dia do Verão de 77, talvez 78. Tão tarde que foi praticamente chegar, cumprimentar a tia Adosinda (outra curiosidade do restaurante de ontem, o vinho que pedimos "puxava" à semelhança no nome, chamava-se Ardosino), que se mantivera de pé para nos receber, e irmos para a cama.
Nessa noite, dormi tão consoladoramente que, ao contrário do que é habitual, não dei conta de nada que se estivesse a passar à minha volta. Entretanto, se normalmente acordo com o Sol, aquele dia não foi excepção. Contudo, também ao contrário do que é habitual, na aparência do meu comportamento físico só os olhos acordaram, o resto do corpo não, não se contorceu nos vulgares movimentos de espreguiçamento matinal e parecia que se mantinha a dormir. E mesmo os olhos acordaram tão devagar que o Fernando, que estava sentado ali à minha cabeceira, não deu conta que eu tinha acabado de acordar. Ele estava de corpo bem voltado para mim, a pouco menos de um metro de distância. Naquele momento, ele olhava pela janela fora, talvez a ver as movimentações de alguém da família, que morava logo ali a seguir, na Casa Preta. Não sei porquê, "instintivamente" cerrei os olhos, tão devagar quanto quando os tinha aberto pouco antes. No fundo, eu não queria que ele ouvisse o barulho dos olhos a fecharem-se outra vez. Cerrei-os o suficiente para que ele não se apercebesse de que eu tinha acordado, mas, ao mesmo tempo, me deixasse manter uma visão nítida do rapaz.
Todo este instintivo cuidado permitiu-me fruir inteiramente o encantamento do momento.
O Fernando, num notável desenho do meu
querido aluno, amigo e companheiro Vasco Lopes
Fixei bem a atenção no Fernando e, aos poucos, fui-me dando conta de todos os elementos sensoriais que faziam parte da sua presença discreta ali ao pé de mim. Era bem evidente que ele já tinha tomado banho nessa manhã e que tinha vestido roupa lavada, da cabeça aos pés. A t-shirt era de um verde-limão muito agradável à vista, e estava toda tingida de gotas de rosa forte, gotas iguais à do vinho que no restaurante de ontem escolhi para o jantar com o meu amigo Rodrigo. Nas mãos, o Fernando segurava um saco de plástico verde-azeitona. As mãos dele estavam também tingidas com a cor do vinho.
Deixei-me ficar ali, fingidamente adormecido, a apreciar aquele delicioso quadro vivo. Vi o Fernando suspirar profundamente... Profundamente, mas silenciosamente, não fosse ele acordar-me, como a cotovia poderia também ter feito ao João no poema de António Nobre. Eu sentia-me bem a vê-lo limpo e tingido, a cheirar a lavado. O tempo passava tão lentamente que pude juntar aos cheiros agradáveis do rapazinho os aromas frescos da manhã na aldeia que entravam pela janela por onde ele olhava quando deixava de olhar para mim. Havia ainda um outro aroma, pregnante, doce, que, pouco depois, me apercebi que vinha de dentro do saco que o Fernando segurava nas mãos.
Finalmente os nossos olhares cruzaram-se. O Fernando fez um sorriso tão grande que a pele da cara se engelhou toda, como sempre acontecia quando ele sorria com muita intensidade. Só a testa continuou lisa, acentuando mesmo o brilho natural, quase espelhando nela o sol que entrava pela janela. Era o sorriso do rapaz a quem pedi o vinho no restaurante, só que o do Fernando era mil vezes mais intenso! O pequeno vizinho da tia Adosinda não me tinha visto chegar na véspera, apenas soubera que eu tinha chegado. “Tome, são para si…” disse o Fernando estendendo-me o saco que tinha nas mãos. Assim mesmo, sem me dizer mais nada. Puxei-me para cima na cama, não tive dúvida nenhuma que tinha de reagir prontamente ao que ele tão decididamente me oferecia. Na posição de sentado, aconcheguei a almofada às costas e aceitei o saco.
O saco estava abundantemente fornecido de amoras prenhes de suco tinto. “Coma, insistiu o Fernando, fui apanhá-las agora.” Sim, eu olhava para ele, outra vez da cabeça aos pés, e não tinha quaisquer dúvidas de que ele tinha acabado de as apanhar! Até conseguia lembrar-me da amoreira em que ele tinha realizado a sua tão matinal - e maravilhosa! - ideia. É que tínhamos parado ali os dois, ficando a conversar ao pé dela, no Verão do ano anterior.
Será que eu poderia simbolicamente dizer que a conversa dos dois tinha dado frutos?... Ou que era o próprio Fernando, meu homónimo, que me estava a dizer isso?... Comi 2 ou 3 amoras e convidei-o a que comesse algumas comigo. “Não, essas são todas para si… Eu depois vou apanhar mais para mim…” Continuei a olhar para ele. O sorriso do Fernando mantinha toda a intensidade. A amoreira ficava ainda longe das casas, a meio do caminho bem declivoso para a ribeira. Realmente, que esforço o dele!... Olhei para dentro do saco e comi mais algumas amoras. Era evidente que naquele momento estávamos os dois muito felizes.
Contei esta história ontem à noite ao Rodrigo, ao jantar, a saborear o vinho, antes de a escrever hoje.

terça-feira, 25 de abril de 2006

O colega de escola... o Estaline

Foi no ano lectivo 1974/75. Foi na Escola Secundária Patrício Prazeres. Estava-se em pleno período de ebulição a seguir ao 25 de Abril. Num dia de aulas qualquer, se calhar, no dia em que fazia anos a morte de José Estaline, e à semelhança de tantos outros dias assim evocativos, lá fomos todos, quase de rebolão, para o ginásio da Escola, para mais uma RGA (reunião geral de alunos). A determinada altura, um dos estudantes líderes da reunião propôs que guardássemos um minuto de silêncio em memória da morte de Estaline. Estávamos ainda todos de braço no ar, de punho cerrado, o minuto ainda não tinha acabado. Baixinho, para não ser ouvida por mais ninguém, uma aluna da escola voltou-se para mim, quase encostou a boca ao meu ouvido e perguntou-me: "Conhecias o aluno que morreu?..." Afastei a minha cabeça de maneira a poder ver bem o rosto dessa colega desconhecida e respondi-lhe, sério por fora e divertido por dentro: "Não colega, nem sei em que ano andava..."

segunda-feira, 24 de abril de 2006

Madrugada de um novo dia. Do outro lado do Tejo, bem lá ao fundo, o disco vermelhão do Sol começou a subir.

Cada apontamento deste blogue constituir-se-á como um relato-testemunho, mais extenso e pormenorizado, ou mais resumido e simplificado, de uma ocorrência actual ou passada na vida de uma criança, ou um jovem, de um crescido ou de um idoso, cujo percurso de vida na escola, ou fora dela, algures, se cruzou com o meu e, um dia, ganhou a forma de um relato ou uma pequena história.

Será também um espaço de encontro ou reencontro com a minha própria família.

Todas as ocorrências de alguma forma me ajudaram a ser a pessoa que que fui e em que me vou transformando.

A outra intenção da publicação deste blogue é a publicação de um livro digital. A todos aqueles que acharem nos meus apontamentos afinidades com histórias suas, convido-os a juntarem essas histórias às minhas e, assim, tal livro tomará a forma de uma autoria colectiva.

terça-feira, 4 de abril de 2006

A primeira aula da Terceira Vaga

Já passaram uns anos valentes desde que li duas obras de Alvin Toffler, para além de ter visto alguns dos seus documentários na televisão. Logo nessa altura me impressionaram bastante, e ainda hoje as suas repercussões na minha maneira de pensar e de tomar perspectivas globais sobre as coisas se fazem sentir.
Quando, durante a semana que passou, procurava na Net sites e materiais sobre portefólios, encontrei, em vários sites que pesquisei, a citação que usei no meu slide da aula de ontem, Os analfabetos do século XXI não serão os que não conseguirem ler e escrever, mas sim aqueles que não conseguirem aprender, desaprender e reaprender. É, na verdade, uma frase à Alvin Toffler.
Também é verdade que, hoje em dia, já se fala abundantemente em "aprender a aprender", mesmo em círculos de pensamento e discussão que, se calhar, nunca tiveram contacto ou conhecimento com as obras de Alvin Toffler, que seguiram outros caminhos.
A aula de ontem - e os comentários finais de todos os alunos participantes na aula deixaram apreciações nesse sentido - foi uma experiência "de terceira vaga" que nos colocou a todos - licenciados da "segunda vaga" - perante a nudez recíproca de todos, em que fomos confrontados com a relatividade da nossa sabedoria tradicional, consagrada nos títulos académicos que ostentamos, e ali estivemos, ignorantes, "desaprendidos", a ter de aprender de novo. E, ironia das ironias, enquanto enfrentávamos, titubiantes, os caminhos novos em que nos tinham colocado, foi do lado do apoio seguro com que contávamos que as coisas revelaram um dos lados frágeis desta modalidade de ensino-aprendizagem de terceira vaga. O professor "caiu" várias vezes. Curiosamente, talvez por isto mesmo, o à-vontade dos alunos foi crescendo aos poucos: é que o professor "caía", mas levantava-se pouco depois; desaparecia e voltava, sem se deixar perturbar pelos impedimentos das maquinarias e dos fluxos de informação que serpenteavam na rede e chegavam ao destino certo ou se tresviavam no caminho. E nós, os alunos ignorantes que ali continuávamos, aos poucos, fomos tomando conta da tecnologia. É que, sem que o planeasse, sem que o previsse, o professor acabou por nos dar uma ajuda preciosíssimo: isto não mata, isto não dá choque, isto não queima as mãos! Por isso, a aula acabou, penso eu, com todos nós a termos a certeza de que a tecnologia é uma coisa que existe para ser posta ao nosso serviço. No fundo, penso que é aquela sensação do condutor automóvel quando finalmente deixa de ter medo do poder de velocidade do carro e sente espalhar-se no corpo a percepção de que a velocidade do veículo será sempre aquela que ele quiser imprimir à máquina.
Ora o que esteve verdadeiramente em questão nas "quedas" do professor foi que os alunos tiveram tempo!... Deixem-me explicar: Penso que o maior problema das tecnologias modernas e das novas aprendizagens tem quase sempre a ver com o tempo... de digestão. É assim: só nos saberá bem o peixinho cozido do jantar depois de termos feito a digestão do lombozinho assado do almoço. As coisas novas, os novos "apports" têm de ser digeridos depois da digestão anterior ter tido o tempo necessário para que se completasse satisfatoriamente. Hoje em dia, as coisas vêm quase sempre em catadupa.
Mas nós ontem tivemos tempo de ir digerindo as coisas aos poucos, uma dentadinha de cada vez. Assim soube muito bem.
É assim que deveria ser sempre com os nossos alunos. E não é, pois não?