quarta-feira, 24 de julho de 2013

Acabei de escrever assim no Facebook "SOU DO PEGO, SOU PEGACHA…"

Acabei de escrever assim no Facebook:
"SOU DO PEGO, SOU PEGACHA Não nego a minha nação Não sou como o meu amor Qu' é do Pego e diz que não." Tomo a ousadia de reclamar para a minha mãe, conhecida na sua terra como a Lourdes Branco, ou a Lourdes Pinto, a primazia de trazer para a Net esta quadra popular. A minha mãe tem agora 85 anos. A razão da lembrança destes versos será publicada já a seguir, num blogue que logo deixarei indicado. Por agora, submeto a minha ousadia à consideração de entidades que muito respeito, como são a TUBUCCI assoc.defesa património região ABRANTES, a ESCOLA INDUSTRIAL E COMERCIAL DE ABRANTES-ANTIGOS ESTUDANTES E FUNCIONÁRIOS, a Salvem da demolição o Real Convento S. Domingos de Abrantes e a Abrantes.
Na nossa família, fosse no círculo mais estreito da relações entre pai, mãe e os três filhos; fosse na família mais alargada, era frequente o meu pai provocar a minha mãe com a "acusação", desdenhosa, de que ela era pegacha. A minha mãe reagia com protesto vivo, exuberante.Esta disputa no casal era sempre sinal de boa disposição, contagiante a todos que estavam à volta do casal. Tornou-se claramente um marco da cultura familiar, que não foi esquecida em 2004, quando os filhos dedicaram aos pais uma linda festa de celebração das suas bodas de ouro.
A minha mãe é a segunda jovem costureira, de sorriso matreiro, da
esquerda para a direita na fotografia, que foi tirada
nos inícios dos anos 50 do século XX.
Hoje, estávamos (a minha mãe, a D. Luísa e eu) ao jantar, na casa da filha Maria de Fátima, lar que é uma das mais genuínas versões atuais do Solar das Azeiteiras (o mítico lugar de encontro da alegre Pintalhada), na Horta, no Faial. A televisão estava ligada e o telejornal passava uma notícia sobre Mação, que é da área geográfica das vivências, dos afetos e das memórias abrantinas da família.  A "Dona Lourdes" captou a referência a Mação; eu aproveitei para a provocar: perguntei-lhe se ela, como era pegacha, tinha ido muitas vezes do Pego a Mação.
É claro que o efeito foi diferente do que havia no jogo que ela jogava com o seu parceiro de vida, com nuances, rituais e cumplicidades que só eles conheciam e sabiam saborear. Espantosamente, e deixando-me imensamente contente por constatar uma notável agilidade mental -  e humor, muito humor! - a sempre negada pegacha olha-me bem nos olhos e com ar bem divertido, dando a volta por cima (porque sabia que eu a queria ver perder o controlo e "irritar-se" como fazia em saborosos tempos idos, com o seu maridinho),  recita-me a quadra... que eu nunca lhe tinha ouvido! Nem sei se os meus irmãos alguma vez a ouviram!... Mas não deixou de rematar, com o dedo indicador direito a exibir uma firme negativa: "Mas eu não sou pegacha!"

quarta-feira, 3 de julho de 2013

«O que quer Deus ainda mais de mim?»

Hoje fui ao encontro de um jovem nigeriano que ando há vários dias a tentar ajudar. Caiu do céu, a queda foi amortecida por um anjo que depois mo deixou nos braços.

O rapaz tem um projecto de vida que, num meio envolvente cheio de escolhos e interesses mesquinhos, ele procura, com esforço denodado, manter vivo,numa experiência de desenvolvimento pessoal  que merece todo o nosso apoio e suporte amigo; voluntarioso e fraternal.

À entrada do prédio onde ele está agora a pernoitar com a solidariedade de um amigo, uma senhora, sobrecarregada com o peso das compras, desconfiou da ajuda que lhe ofereci enquanto esperava que, lá de cima, do 7.º andar, respondessem ao meu toque de campainha:

- “O senhor desculpe-me, mas hoje há tanta gente a invadir os nossos prédios… Tocam, só querem vir às nossas casas, é para pedirem-nos coisas, sei lá, são tantos!… Pensei que fosse desses.”


A senhora acabou por aceitar a minha ajuda. Fiquei com os sacos ali ao pé de mim e ela foi ver se tinha correio. Já idosa, apercebi-me, pelo peso dos sacos, que aquilo era um esforço físico muito exigente para ela. Entrou no elevador, eu segurava a porta. -”Qual é o andar?”, – “É o terceiro, obrigada…” Quando saiu do elevador já sorria. Olhou-me com cordialidade e agradeceu-me a ajuda.

O elevador retomou a subida, do 3.º ao 7.º andar. Depois de estar com o rapaz da Nigéria, saí pela mesma porta – antes de entrada, agora de saída – em que me cruzara com a senhora idosa. Lá à frente, em baixo, um velhote tentava, com a ajuda de uma bengala, subir os poucos degraus do passeio até à porta. Deixei-me ficar ali, segurando-a bem aberta para que o senhor entrasse. Trazia na mão livre da bengala uma pasta de documentos azul transparente. Apoiava o cotovelo desta mão no corrimão, em ajuda à subida dos degraus. Quando me viu à porta, a segurá-la, sorriu imediatamente e agradeceu-me.

Ao pé de mim, parou, suspirou fundo, ajeitou os óculos, olhou-me bem nos olhos e voltou a agradecer-me. Fiz-lhe uma festa discreta no braço, sorri-lhe e perguntei se precisava de mais alguma ajuda.

Não, não precisava, mas a minha pergunta – eu sabia que, com o meu gesto, me dispunha a que isso acontecesse – foi para o senhor apenas o pretexto para me falar; e eu, sem que tal me custasse,  fiquei ali a olhá-lo e a ouvi-lo. Ele que falasse o que quisesse!…

- “Isto está tão difícil… porque vive uma pessoa assim até à minha idade?…” E a conversa foi fluindo; admiravelmente com uma dignidade exemplar! “Porque cheguei eu a esta idade assim?… Sabe, senhor, eu não sabia porquê, mas agora já sei… Os homens na minha família morrem todos muito cedo… o meu pai morreu com 53 anos, o meu tio com quarenta e tal… só as mulheres chegam aos 85, aos 87 anos… Eu, se não houver nada antes, vou chegar aos 85 em novembro… E eu não sabia porquê… A vida está tão difícil, e eu estou tão fraco!… Eu perguntava-me muitas vezes «O que quer Deus ainda mais de mim?» Agora já sei, senhor… A minha mulher teve, durante muitos anos, uma grande depressão, andou anos num psiquiatra; depois disso veio o parkinson, passou para um neurologista, a seguir veio um acidente vascular cerebral… as reformas são o que são, tanto que nos têm tirado!… Andei a pagar um euro por dia para alugar a cadeira de rodas para a minha mulher, até que comprei uma cadeira de rodas só para ela… as sessões de fisioterapia andei a pagá-las a 50 euros cada uma, eram 500 euros por mês… depois, como não aguentava, e ela estava um bocadinho melhor, reduzimos o número de sessões mas ainda continuava a pagar 300 euros por mês… e tudo sem ajudas, sem a Segurança Social pagar nada!… Depois disseram-me para ir pedir ajuda social…Ó senhor, eu fui, mas para quê?… E tive de parar… A certa altura, da igreja só lá iam a casa por causa da roupa, era só para lavar a roupa, e todos os meses aumentava o preço!… Só para lavar a roupa, e já ia nos 60 euros por mês… Que faço eu, senhor?… A minha filha reformou-se como professora e a situação dela é cada vez pior com o que agora lhe vêm buscar à reforma. Estamos aqui em casa dela, se fosse na nossa casa, era mais difícil ter as consultas de fisioterapia e as outras coisas… Fui torneiro-mecânico e fazia as escalas de trabalho… dei o que pude no meu trabalho… Porque não me levou Deus como levou o meu pai, o meu tio e os outros homens da família? Agora já percebi porque ele quis que eu ficasse mais tempo que eles, a minha mulher precisa de mim… mas que vida é esta em que andamos, para quê fazer o que fazemos na vida, sempre a dar tudo o que temos?… Temos mesmo de acabar assim?…"

Falou-me sempre com muita firmeza e não se deixou abater pelas emoções, olhando-me frontalmente, por detrás dos óculos de velho. Os olhos mostravam sinais da vida que tão dramaticamente me resumiu. Pediu-me desculpa pelo tempo que me tinha tomado e agradeceu-me com renovado sorriso, também este, admiravelmente sereno.

Tentei também continuar a sorrir-lhe,  com muita ternura, e fiz-lhe outro gesto de carinho no braço direito. Ambos largámos a porta que ele segurava pelo lado de dentro e eu pelo lado de fora; a porta fechou-se brutalmente entre nós, separando-nos definitivamente. Olhámos ainda mais uma vez um para o outro e dissemos adeus com a mão. Fiquei a ver o senhor a virar-se lentamente, na direcção dos elevadores, arrastando os pés, curvado sobre a bengala na mão direita e a pasta azul na mão esquerda. Junto ao cotovelo, eram ainda visíveis no braço as marcas do esforço feito sobre o corrimão a subir os degraus.

Hoje não podia evitar o que senti e pensei a seguir: odiei com muita força os passos coelhos, os paulos portas, os antónios josés seguros, os durãos (sim, não são durões)  barrosos, os josés sócrates,  e toda essa corja de gente indigna!