domingo, 28 de setembro de 2014

A importância de andar à procura de nada – parte 2/2

A importância de andar à procura de nada – parte 2/2

Domingo, 28 de Setembro de 2014.

Como disse na primeira parte, passei a sair aos domingos, com frequência, à procura de nada. No mesmo domingo – este - em que reencontrei dois velhos amigos no Vasco da Gama, do nada surgiram mais duas ocorrências significativas. Um pouco mais tarde, a várias estações de Metro de distância.

Do Vasco da Gama fui ao Chiado, a pensar nos livros da rua ali ao lado da Bertrand, as promoções da FNAC, e as novidades da velha Sá da Costa.


A Sá da Costa azafama-se em limpezas dos velhos móveis e dos velhos livros. Hesito; sim, estava mesmo aberta, mas com as limpezas a decorrer, pediram-me paciência. Encontrei rapidamente dois livros interessantíssimos, de folhas por abrir a preços também interessantíssimos; não saíram mais das minhas mãos. Pedi finalmente o que vira na montra, antes de entrar, e me convencera a passar a porta para dentro. Como calculava, era bastante caro; caro para além do que o orçamento mensal para livros do mês me permite. O senhor que me atendeu, funcionário, ouviu o meu pedido de reserva, por um mês; ouviu e calou-se. Chamou o patrão, que estava lá ao fundo da sala; enquanto ele se aproximava, eu tentei logo moldar-lhe a vontade. Não foi difícil, o bom homem aceitou imediatamente.

Enquanto o funcionário preenchia a ficha de reserva, reparei que ele escrevia os números, ora de baixo para cima, ora de cima para baixo. Aparentava 40 anos. Eu não podia deixar passar aquele comportamento inusitado em claro. Acabámos por conversar abertamente, o senhor ficou sensibilizado com a minha capacidade de observação. Tinha de haver história!... E ela veio, enquanto mais nenhum cliente da loja se chegasse ali para perguntar alguma coisa, ou finalizar qualquer compra. Era um esquerdino contrariado desde sempre, desde muito pequeno - contrariado à velha dura maneira. Tentou equilibrar-se numa ambidextria de compromisso entre a natureza espontânea dos gestos e exigência lamentável da escolarização. A criativa ambidextria tem sido eficaz numas vezes, outras vezes não tem sido tão bem sucedida. A idade? 42 anos, sim, eu estava perto. Perguntei-lhe, já à pressa – o tal cliente acabava de chegar ali ao pé de nós, que já só conversávamos, com tudo dos livros já tratado -, se estaria disponível para ser abordado por um aluno meu, para um trabalho monográfico de Psicologia. Disse-me logo que sim. Tomei nota do nome do senhor, agradeci-lhe e saí dali para a Bertrand.

Na Bertrand, e depois na FNAC, nada de especial a assinalar. Voltei ao Metro, a caminho de casa.

Na estação da Alameda, faço o transbordo necessário da linha Verde para a Vermelha. Já no cais desta linha, pego num dos livros que comprei e, ainda não tinha folheado a primeira página sequer, já alguém me tocava no ombro esquerdo, por trás de mim. Volto-me de deparo-me com um bem radioso sorriso. Um aluno de há dois anos - ao que me pareceu, ali acompanhado pela namorada – fez questão de me abraçar e conversar um pouco comigo. Está bem, entusiasmado e confiante no seu projecto universitário. E perguntou-me pelas aulas, ele sabe como eu tento que as aulas sejam sempre. Soube-me bem o carinho que ele me demonstrou ali. A confirmar-me que estou no bom caminho; no caminho de bem ser e bem estar na escola. E, se calhar, na vida…

A composição do metropolitano que me levaria a Chelas já chegava àquele cais e quem estava com o meu querido aluno certamente já o reclamava para ao pé de si.

Manhã de nada, encheu-se de gente e afectos – acontecidos sem serem procurados, mas, todos eles!, com claros sinais de acontecerem empenhadamente.

(fim de “A importância de andar à procura de nada”)

Sobre a importância de andar à procura de nada – parte 1/2

Sobre a importância de andar à procura de nada – parte 1/2

Passei a sair aos domingos, com frequência, à procura de nada. Normalmente, faço-o de manhã. Não tenho crianças que me obriguem a dedicar-me a elas na manhã do dia santo da semana. Com o meu pai, no meu tempo, não sei se me aborreceria com ele se ele não dedicasse as suas manhãs de domingo aos filhos pequenos. E ele sempre o fez com evidente prazer.

A “culpa” da minha recente ocupação domingueira é das chamadas ""grandes superfícies" comerciais. Em vez de ir intencionalmente a uma exposição ou a um evento, vou ao Continente do Vasco da Gama, ou vou os Pingo Doce do Spacio dos Olivais, à procura de nada. A competição pelos clientes traz, por vezes, nas grandes superfícies comerciais, preços muito atractivos de comidas, bebidas, roupas, coisas para a casa, livros, etc.

Então, é assim: não tenho nada para comprar, mas vou à grande superfície, pode ser que encontre lá alguma coisa interessante a bom preço. Por exemplo, na semana passada encontrei um livro, que eu não sabia sequer que existia, a 5 euros! Folheei… revirei a capa, e nela encontrei uma apreciação muito breve, em uma linha só, do professor Marcelo Rebelo de Sousa; voltei a folhear, e conclui que a apreciação do professor Marcelo Rebelo de Sousa é mesmo muito pobre, parece-me ser feita a despachar, por boa educação.

Volto para casa, e começo logo a leitura do livro no Metro. Eh, pá!... O livro é mesmo muito bom, constato eu logo ao final do dia! 2 ou 3 dias depois, volto ao Continente do Vasco da Gama. Restavam lá 4 exemplares, ainda a 5 euros cada um, trouxe-os todos comigo. Todos eles terão dono.

Hoje tornei ao Continente, à mesma banca dos livros a 5 euros – já nenhum para venda; talvez amanhã, a partir do final da tarde, haja reposição, diz-me solicitamente uma funcionária. Agradeci a informação e vim de lá não trazendo nada, nem da secção dos livros, de qualquer outra secção da grande superfície. Mas estou decidido a voltar ao Continente amanhã ao final da tarde.

Quando me vinha embora, já de lado de fora da grande loja, reparo que um velho colega de trabalho, e amigo, estava a acabar de pôr nos sacos as compras; a mulher estava com ele. Afastei-me discretamente, para não ser por ele reconhecido, e disposto a meter-me com ele, de surpresa. Depois de um grande rodeio, cheguei-me por trás dele e tirei-lhe do carro dois sacos de compras sem o deixar ver-me a cara e afastei-me. Ouvi-o a balbuciar qualquer coisa, e antes que ele viesse atrás de mim e me desse algum tabefe, voltei-me para trás e devolvi-lhe os sacos.

Risos, abraços, e conversa em dia; depois, cada um para seu lado. Já a chegar à zona da Gare do Oriente, lamentei-me de não lhe pedir o email ou o número de telemóvel, para actualizar o contacto. Ainda não tinha acabado a auto-censura, já me cruzava com outro velho amigo que não via há bastante tempo. Mais risos e abraços, e conversámos sobre outro velho amigo comum, que foi há pouco tempo trabalhar para Londres.

Enquanto estava à conversa com o segundo amigo reencontrado, vi vir na direcção da Gare o amigo do primeiro encontro, que, antes, quando nos despedimos, tinha tomado o caminho oposto ao meu. Vinha mesmo a ver se ainda me encontrava, para trocarmos contactos actuais!

É assim que pode acontecer quando não se pensa demasiadamente: sai-se de casa por nada, à procura de um hipotético preço mais baixo e volta-se para casa com coisas que valem muito e não têm preço.

(fim de “A importância de andar à procura de nada – parte 1/2; depois virá a parte 2/2)