sábado, 26 de setembro de 2015

Uma pequenina homenagem à avó Lourdes, «uma abrantina de gema»

Meus queridos sobrinhos, que posso eu dizer-vos hoje, marcado pela angústia do futuro próximo, acerca da vossa avó?
(Texto escrito no avião, viagem Horta-Ponta Delgada-Lisboa, 29 de Agosto de 2015)

           
Fiz questão de, à saída do quarto, olhar bem a avó Lourdes, hoje de manhã, em casa da tia Fatinha, depois de me despedir dela. Mais do que nunca.
            A avó pôs os olhos bem fixados em mim, era um olhar tranquilo e carinhoso. A tia Fatinha perguntou à avó se só olhava e não dizia adeus, que ela bem podia mexer a mão direita (afinal, os sucessivos avc's têm-lhe massacrado é o outro  braço, o esquerdo). A avó ouviu a filha e correspondeu ao seu pedido - fez-me um claro aceno de mão, os dedos bem unidos, só o polegar, certinho, a afastar-se um pouco, compondo o aceno bem como ele deve ser feito.
            Mais do que nunca, ou melhor, pela primeira vez senti, pensei, que poderia ser a última vez que visse a avó Lourdes assim, a olhar-me; e eu a olhá-la. Senti muita ternura, muita paz; uma infinita tranquilidade, mesmo que, ao mesmo tempo, desejasse com muita força que não tivesse sido a última vez ali, ao pé dela, a falar com ela. Quero ouvi-la outra vez a dizer-me, ainda de olhos fechados, com o seu típico bom-humor, “Bom dia, Adriano…”, depois de outra vez eu a provocar com o meu sussurrante “Bom dia, Maria Joaquina!”. Quero ouvi-la dizer, ao chegar-lhe, no desjejum, o copo, que “a água passa”, mas que “deixa-me engasgada”; e que “o iogurte não presta”; e que eu, a dar-lhe estas coisas, não devo gostar nada dela. Se gostasse, levava-lhe era pão com azeitonas, ou café e pão com queijo. (1)
            Mas pode muito bem ter sido a última vez que tenha visto a avó Lourdes viva; como muitas vezes ouvi o avô Pinto e os seus irmãos dizerem, “é a lei da vida”.
            Sei o que quero dizer quando chegar o dia que todos nós temos desejado que chegue o mais tarde possível, ou não chegue mesmo; por isso talvez seja melhor escrevê-lo já, que, por enquanto, tenho controlo sobre as emoções, controlo esse que muito provavelmente não terei quando for confrontado com a necessidade, imposta pelo desiderato inelutável, de o fazer:
            Queridos netos da avó Lourdes, a minha mãe não foi, absolutamente, a melhor mãe do mundo; essa, tanto a gente a reclama, essa não é a minha mãe, essa não é a vossa avó. A minha mãe é única! A vossa avó é única! Foi uma criança que viveu a sua meninice de maneira muito intensa, foi uma jovem muito alegre e amiga das suas amigas; foi esposa fidelíssima, foi mãe extremosa; foi avó encantadora e foi ainda ‘bivó’ que fascinou a sua ‘Piriquita’ como mais ninguém.
Em contraste com todas estas coisas bonitas que cultivou ou que encontrou, testemunhei, com a angústia em mim bem presa, mais do que uma vez, o ataque, sobre ela, das maldosas doenças, e a nossa Velhitas sempre brincando - gaiatamente, docemente.
A minha mãe, a nossa mãe, a vossa avó, foi uma mulher notável, que passou por todos os desafios que o ciclo da vida lança a cada ser humano da infância à velhice – passou por eles e venceu-os a todos. A todas as meninas do mundo, a todas as mulheres, a todas as velhinhas desejo eu um ciclo de vida assim – assim se fazem as mulheres únicas que espalham à sua volta alegria, paz, amor e atenção ao próximo; sempre desinteressadamente, sempre com o maior dos desvelos.
            Na profunda humanidade dos seus actos, a avó Lourdes viveu céus, experimentou infernos; todos nós pudemos ser testemunhas da invejável capacidade que teve de fazer calarem-se dentro de si os afectos difíceis e as memórias dolorosas e manter vivos, consoladoramente bem audíveis, os saborosos contrários de todas essas coisas más.
            Numa das últimas vezes, agora neste mês de Agosto, que lhe aconcheguei a roupa da cama, ao deitar, perguntei-lhe: “Então, Velhitas, não tens sono?...” A avó olhou-me com um sorriso meigo e respondeu-me com esta tranquilidade toda: “Não tenho agora, mas quando ele chegar eu vou estar pronta para o receber.”
            É, queridos sobrinhos, a avó Lourdes estava pronta. Agora estará ao pé do seu ‘Nino’ a brincar com ele o saboroso segredo de que só conhecemos a escrita das quatro letras em iniciais maiúsculas – é, o segredo é mesmo deles. Os segredos são assim mesmo - a eles, os deles; a cada um de nós, os nossos. Este de quatro letras, definitivamente, eternamente, é deles, de mais ninguém.
A Lourdes Branco, a minha mãe, a avó Lourdes, a Bivó, vai finalmente poder voltar a partilhar o seu segredo com, como ela dizia, “o meu homem”. Muito doente, neste muito delicado mês de Agosto de 2015, a Velhitas de todos nós confidenciou-me: “Tenho muitas saudades de uma pessoa…” Fingi que não percebi quem era e perguntei-lhe de quem falava; a avó precisava de o dizer: “É do meu homem, o vosso pai…” Finalmente, repito, a avó vai poder voltar a partilhar com o seu homem a cumplicidade daquelas quarto letras, iniciais de qualquer coisa, que só eles os dois conhecem – é, seguramente, o segredo mais puro, mais genuíno, mais bem guardado da família.
Vá, vamos sair de mansinho, vamos deixá-los na intimidade que é deles, que eles souberam inventar para eles mesmos, e a que foram sempre fiéis. Que exemplo para nós todos!
            Beijo grande, Velhitas! Dá por nós um beijo também grande ao Velho! E a todos os familiares queridos que, seguramente, te receberão junto deles com muito carinho, com muita alegria, com muito amor.
Até sempre, querida mãe! Obrigado por tudo o que foste para mim, por tudo o que me deste! Que orgulho tenho em ti! É um privilégio muito grande ser teu filho!


- A minha mãe veio a falecer a 25 de Setembro de 2015, sem que, na verdade, eu a voltasse a ver a olhar-me e a falar comigo.

(1) É claro que a minha mãe me dizia isto com muito carinho, ela sabia que o seu cafezinho e o pão com queijo fresco chegariam pouco depois.

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