domingo, 5 de dezembro de 2010

Somos a nossa história, e a nossa história é sempre única

Na semana passada (foi no dia 23 de Novembro), quando ainda se ouviam os últimos ecos dos parabéns cantados ao Miguel, eu fui visitá-lo. Ao jantar, a mana, a Nicole, ainda a dois mesitos do primeiro aniversário, mesmo sentada lá ao fundo, na cadeira mais longe de mim, esticou firmemente, as vezes que pode, o indicador direito, claramente apontando as batatas fritas que a mãe acabara de tirar da sertã. Foi mesmo assim, todos tivemos de comer menos dois ou três palitos de batata porque ela também já aprendeu a gostar de batatas fritas e a reclamá-las quando o cheiro ou a forma estão ali por perto.
O Miguel, que agora já está bem mais crescido;
mas ele era assim quando me chamou "histórico".
Depois do jantar, fomos para a sala e andei com o Miguel às voltas na Inquisição e no reinado de alguns reis, que seriam tema para um teste de História dali a dois dias.
Pouco antes de os deixar, pedi ao Miguel que me autografasse o seu CD, Eu Nasci para Cantar, que foi recentemente lançado. O Miguel logo tratou de satisfazer o meu pedido, ali joelhado no chão da sala, com o CD posto em cima do sofá, entre mim e o pai. Quando acabou, levantou-se, empertigou-se, colocou a voz e leu-nos o que tinha escrito, terminando com um triunfal sorriso: "... Miguel Guerreiro!" "Miguel", pedi-lhe eu, enquanto ele tinha o CD e a esferográfica nas mãos, "põe a data, se fazes favor." Quase sem me deixar acabar a frase, o Miguel virou-se para mim, fez um largo sorriso, e exclamou: "Ah... O Fernando é um histórico!..."
Fui apanhado desprevenido pelo tão espontâneo comentário do Miguel (talvez feito em resultado, não sei, do assunto que antes nos ocupara), mas logo tomei consciência do que ele me queria dizer. E o que pensei agradou-me sinceramente, pelo que foi com redobrada cordialidade que lhe agradeci o autógrafo e o comentário. O Miguel Guerreiro tem razão, sou um "histórico"! Sim, gosto - eu preciso mesmo! - de marcar os acontecimentos, as coisas, mesmo que sejam momentos de nada, todos os que acontecem nalguma parte, nalgum momento das nossas vidas. O que faz a nossa individualidade é a singularidade das coisas que nos acontecem na vida. Podemos ter muitos acontecimentos idênticos nas vidas de todos nós (estudar, casar, adoecer, ficar triste; ganhar e perder, etc.), mas a maneira como tudo decorre, a sequência que  acontece, tornando causa nuns o que é consequência noutros, tudo isso é absolutamente único.
Na poeira cósmica que todos somos, há um pequeno grão dessa poeira, e só mesmo um, que conta a história de um jantar com o Miguel Guerreiro e a sua família, em que ele assinou um autógrafo e disse, a quem lho pediu, que ele era um histórico. Num tempo de poeira cósmica em que, por muito que se apele à reciclagem, o que domina ainda é o usa e deita fora; num tempo em que o jeito social é tocar e andar, e partir para outra; digo, num tempo assim, dizer como o Miguel disse, "Ah!... O Fernando é um histórico!..." é sinal de parar, olhar, e consciencializar que as coisas se sucedem numa sequência que dá sentido à vida de cada um.
A história é o que liga, é o que dá sentido. Obrigado, querido Miguel por este autógrafo tão especial!... Parabéns por essa sensibilidade! No fundo, tu, ingenuamente, espontaneamente, foste capaz de intuir essa condição que é a que torna a nossa espécie distinta de, quase seguramente, das outras: nós produzimos história. Provavelmente, no momento do meu pedido, tiveste tu primeiro consciência disso mesmo, eu só tive depois. Ainda bem que a tiveste, querido Miguel. Nem sabias tu que, dois dias depois, na minha escola, a celebração a que não pudeste ir estava precisamente centrada na história de pessoas que se juntam, se separam e depois têm vontade de se juntar outra vez; e levar outros consigo. Tantas vezes se veio a dizer, na minha escola, nesse tal dia dois dias depois do nosso jantar e do teu autógrafo, "... há trinta e dois anos..." Também um dia o teu autógrafo terá trinta e dois anos, e, nessa altura, terá uma história para contar. Uma história única. Se é ou será  importante essa história?...  Volto à poeira: na poeira cósmica que todos somos ou seremos, que história no Mundo há ou haverá história ou acontecimento mais importante que a do autógrafo que assim me deste?... Lamentável é que,  hoje em dia, tanta gente no Mudo, tantos políticos que nos governam, parecem esquecidos de essa nossa tão fundamental condição, a da história da vida pessoal de cada um e de todos. Condição de verdadeira humanidade.