quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

QUE NEM LAGARTO AO SOL

Hoje caminhei para o consultório com folga de tempo.
Apetecia-me um café, mas já me aborreci com o mau atendimento do bem vistoso e muito moderno café-pastelaria que está logo ali à saída do Metro. Não, este tem mesas largas e espaço amplo, mas ali não ficaria.
Fiz o primeiro quarteirão a ler vagarosamente, cuidando de, antes de enfiar os olhos no livro, observar até ao cruzamento seguinte, a calcular a linha de caminho mais desimpedida. Sabia-me bem o calor do Sol, que me aconchegava pelo lado que melhor me sabe, o esquerdo. Lá na outra ponta, os semáforos estavam verdes para peões, atravessei a 5 de Outubro. O pequeno estabelecimento do café, que serve o café expresso que mais aprecio, o Buondi, era já ali à frente, mais três ou quatro passos.
Mas o sol estava a saber-me mesmo bem. Pensei fugazmente na dose mínima diária de sol que os especialistas nos recomendam fazermos. Sim, tinha tempo. O buondi iria esperar mais um pouco, e acrescentei um pedacinho de prazer antecipado a lembrar-me que só me custaria 50 cêntimos. No tal modernaço teria pago 70 cêntimos, e no café do outro lado da rua 65 cêntimos - pagar nitidamente menos pelo café expresso mais apreciado não é ganho extra de todos os dias.
Mesmo ali ao lado direito, na parte mais de dentro do passeio, um pequeno canteiro com um bordo à altura ideal de apoiar o cotovelo.
Que bem o sol continuava a saber-me! A luz espalhava-se, abundante, nas páginas que os olhos percorriam, sem os ferir - muito lindo o dourado vertido nas páginas, tomava eu consciência!
Um transeunte chegou-se a mim e educadamente, num português do Brasil, perguntou-me pela estação de Metro. Indiquei-lha.
Retomei a leitura, voltando à consciência do saboroso calor do Sol e do muito agradável dourado das páginas do livro. A que juntaria, dali a pouco, o gostoso sabor dos 50 cêntimos de café...
Outros transeunte, o mesmo pedido de informação, desta vez com sotaque forte de português africano. A mesma delicadeza de trato.
Faziam-se horas. Caminhei para o minúsculo café. Ainda mal entrara, uma muito suave e jovem voz de menina brasileira me dava as boas tardes. Correspondi e pedi uma bica.
Enquanto a menina tirava o café, puxei do porta-moedas e peguei numa moeda de 50 cêntimos, que pus em cima do balcão. A mão que pousou a chávena do café à minha frente foi a mesma que pegou na moeda. Reparo que põe a moeda bem à frente dos olhos, mira-a dum lado, mira-a do outro. «Senhor, é sessenta cêntimos.» «Mas ainda ontem paguei cinquenta...» «Sim, é verdade, mas cinquenta cêntimos é só à quarta-feira, nos outros dias é sessenta.» «Uma promoção do dia, é? Ou melhor, despromoção, promoção foi ontem.» A rapariga riu-se e encolheu os ombros. Eu estava bem disposto, com o calor do sol e a luz dourada das páginas ainda a reverberarem nos sentidos. «Já sei o que vou fazer, na quarta-feira da semana que vem tomo logo sete cafés seguidos, fico com a semana toda feita de cafés mais baratinhos!» A menina riu-se outra vez.
Saio para a rua e enfio logo os olhos outra vez no livro. Dou dois passos e logo um rosto muito bonito de jovem senhora me esbarra o caminho. Trocamos abraços, trocamos sorrisos, fazemos conversa, pergunto-lhe pelo rapaz dela, um valente moço. Sim, está muito bem, no 10.º ano, num curso profissional, está a gostar muito, está a ter boas notas. O trabalho que este rapaz já deu!... Um verdadeiro herói. Gostava muito de o voltar a ver, deve estar um homem! «Vá, diz-lhe que arranje um espacinho na agenda dele para irmos almoçar e pormos a conversa em dia.» A senhora, agora mãe, lembro-me dela ainda a dar passitos titubeantes... Os anos passam... Muitas dificuldades aconteceram, agora parece que estão bem. Fico contente pelo moço e fico contente pela mãe-que-foi-menina - e ainda parece menina.
Subo ao escritório. De sentidos docemente preenchidos e sentimentos carinhosamente despertados. Quase apetecia deixar-me levar, indolente. Forcei-me a reagir. Quem me procurava merecia todo o respeito e entrega, pessoal e profissional.
Duas horas depois saí outra vez para a rua. Eu vinha seguro de que o que tinha de correr bem correu mesmo muito bem. Mais um bocadinho de sol gostoso.
No Metro, enfiei outra vez os olhos no muito interessante livro que precisava do tempo das viagens de carris para prosseguir a sua própria viagem. Já as páginas não tinham o encantador dourado de horas antes - mas um dia ele voltará!

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