Meus queridos
sobrinhos, que posso eu dizer-vos hoje, marcado pela angústia do futuro
próximo, acerca da vossa avó?
(Texto escrito no avião,
viagem Horta-Ponta Delgada-Lisboa, 29 de Agosto de 2015)
Fiz questão de, à saída do quarto,
olhar bem a avó Lourdes, hoje de manhã, em casa da tia Fatinha, depois de me
despedir dela. Mais do que nunca.
A avó pôs os olhos bem fixados em
mim, era um olhar tranquilo e carinhoso. A tia Fatinha perguntou à avó se só
olhava e não dizia adeus, que ela bem podia mexer a mão direita (afinal, os sucessivos avc's têm-lhe massacrado é o outro braço, o esquerdo). A avó ouviu a
filha e correspondeu ao seu pedido - fez-me um claro aceno de mão, os dedos bem
unidos, só o polegar, certinho, a afastar-se um pouco, compondo o aceno bem
como ele deve ser feito.
Mais do que nunca, ou melhor, pela
primeira vez senti, pensei, que poderia ser a última vez que visse a avó
Lourdes assim, a olhar-me; e eu a olhá-la. Senti muita ternura, muita paz; uma
infinita tranquilidade, mesmo que, ao mesmo tempo, desejasse com muita força
que não tivesse sido a última vez ali, ao pé dela, a falar com ela. Quero
ouvi-la outra vez a dizer-me, ainda de olhos fechados, com o seu típico bom-humor,
“Bom dia, Adriano…”, depois de outra
vez eu a provocar com o meu sussurrante “Bom
dia, Maria Joaquina!”. Quero ouvi-la dizer, ao chegar-lhe, no desjejum, o
copo, que “a água passa”, mas que “deixa-me engasgada”; e que “o iogurte não presta”; e que eu, a dar-lhe
estas coisas, não devo gostar nada dela. Se gostasse, levava-lhe era pão com
azeitonas, ou café e pão com queijo. (1)
Mas pode muito bem ter sido a última
vez que tenha visto a avó Lourdes viva; como muitas vezes ouvi o avô Pinto e os
seus irmãos dizerem, “é a lei da vida”.
Sei o que quero dizer quando chegar o
dia que todos nós temos desejado que chegue o mais tarde possível, ou não
chegue mesmo; por isso talvez seja melhor escrevê-lo já, que, por enquanto,
tenho controlo sobre as emoções, controlo esse que muito provavelmente não
terei quando for confrontado com a necessidade, imposta pelo desiderato
inelutável, de o fazer:
Queridos netos da avó Lourdes, a
minha mãe não foi, absolutamente, a melhor mãe do mundo; essa, tanto a gente a
reclama, essa não é a minha mãe, essa não é a vossa avó. A minha mãe é única! A
vossa avó é única! Foi uma criança que viveu a sua meninice de maneira muito
intensa, foi uma jovem muito alegre e amiga das suas amigas; foi esposa
fidelíssima, foi mãe extremosa; foi avó encantadora e foi ainda ‘bivó’ que
fascinou a sua ‘Piriquita’ como mais ninguém.
Em contraste com todas estas coisas bonitas que cultivou ou
que encontrou, testemunhei, com a angústia em mim bem presa, mais do que uma
vez, o ataque, sobre ela, das maldosas doenças, e a nossa Velhitas sempre
brincando - gaiatamente, docemente.
A minha mãe, a nossa mãe, a vossa avó, foi uma mulher
notável, que passou por todos os desafios que o ciclo da vida lança a cada ser
humano da infância à velhice – passou por eles e venceu-os a todos. A todas as
meninas do mundo, a todas as mulheres, a todas as velhinhas desejo eu um ciclo
de vida assim – assim se fazem as mulheres únicas que espalham à sua volta
alegria, paz, amor e atenção ao próximo; sempre desinteressadamente, sempre com
o maior dos desvelos.
Na profunda humanidade dos seus
actos, a avó Lourdes viveu céus, experimentou infernos; todos nós pudemos ser
testemunhas da invejável capacidade que teve de fazer calarem-se dentro de si
os afectos difíceis e as memórias dolorosas e manter vivos, consoladoramente
bem audíveis, os saborosos contrários de todas essas coisas más.
Numa das últimas vezes, agora neste
mês de Agosto, que lhe aconcheguei a roupa da cama, ao deitar, perguntei-lhe: “Então, Velhitas, não tens sono?...” A
avó olhou-me com um sorriso meigo e respondeu-me com esta tranquilidade toda: “Não tenho agora, mas quando ele chegar eu
vou estar pronta para o receber.”
É, queridos sobrinhos, a avó Lourdes
estava pronta. Agora estará ao pé do seu ‘Nino’ a brincar com ele o saboroso
segredo de que só conhecemos a escrita das quatro letras em iniciais maiúsculas
– é, o segredo é mesmo deles. Os segredos são assim mesmo - a eles, os deles; a
cada um de nós, os nossos. Este de quatro letras, definitivamente, eternamente,
é deles, de mais ninguém.
A Lourdes Branco, a minha mãe, a avó Lourdes, a Bivó, vai
finalmente poder voltar a partilhar o seu segredo com, como ela dizia, “o meu
homem”. Muito doente, neste muito delicado mês de Agosto de 2015, a Velhitas de
todos nós confidenciou-me: “Tenho muitas
saudades de uma pessoa…” Fingi que não percebi quem era e perguntei-lhe de
quem falava; a avó precisava de o dizer: “É
do meu homem, o vosso pai…” Finalmente, repito, a avó vai poder voltar a partilhar
com o seu homem a cumplicidade daquelas quarto letras, iniciais de qualquer
coisa, que só eles os dois conhecem – é, seguramente, o segredo mais puro, mais
genuíno, mais bem guardado da família.
Vá, vamos sair de mansinho, vamos deixá-los na intimidade que
é deles, que eles souberam inventar para eles mesmos, e a que foram sempre
fiéis. Que exemplo para nós todos!
Beijo grande, Velhitas! Dá por nós
um beijo também grande ao Velho! E a todos os familiares queridos que,
seguramente, te receberão junto deles com muito carinho, com muita alegria, com
muito amor.
Até sempre, querida mãe! Obrigado por tudo o que foste para
mim, por tudo o que me deste! Que orgulho tenho em ti! É um privilégio muito
grande ser teu filho!
- A minha
mãe veio a falecer a 25 de Setembro de 2015, sem que, na verdade, eu a voltasse
a ver a olhar-me e a falar comigo.
(1) É claro que a minha mãe me dizia isto com muito carinho, ela sabia que o seu cafezinho e o pão com queijo fresco chegariam pouco depois.