domingo, 9 de outubro de 2016

NÃO BASTA DIZER QUE A MORTE É UMA CONDIÇÃO DA VIDA

Psicologia - Frase da semana, 09OUT16: NÃO BASTA DIZER QUE A MORTE É UMA CONDIÇÃO DA VIDA

«Aprendi que há uma diferença fundamental no modo como os
brancos e negros tratam os falecidos. Nós, os negros, lidamos com os mortos. Os brancos lidam com a morte. Foi esse desencontro que Germano enfrentou ao enterrar o cantineiro Francelino Sardinha. Aquela cerimónia de despedida era um modo de pedir licença à morte para esquecer o morto.» (Mia Couto, "A Espada e a Azagaia, 2016, Editorial Caminho, p. 63)

— Tens medo de morrer?— Não é morrer que me dói. O que me dá tristeza é ficar morto.
Começa assim o "O Outro Pé da Sereia" de Mia Couto.
Em muitos dos seus livros, sempre mágicos…, Mia Couto fala da Vida e da Morte com palavras fáceis que ajudam os leitores a entender uma e outra.
Em “Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra”, o escritor começa precisamente assim a fascinante ficção:
«A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. […] A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais para de morrer.”
Um pouco mais à frente, escreve outro pensamento, que volta a expressar no seu mais recente romance, a trilogia “As Areias do Imperador”; mas já lá vamos – ainda o Tempo e a Terra:
«Em África, os mortos não morrem nunca. Excepto aqueles que morrem mal. A esses chamamos de “abortos”. Sim, o mesmo nome que se dá aos desnascidos. Afinal, a morte é um outro nascimento.»
No “Jesusalém”, Mia Couto escreve:
«A vida só sucede quando deixamos de a entender. […] Eis a lição que aprendemos em Jesusalém: a vida não foi feita para ser pouca e breve. E o mundo não foi feito para ter medida.»
Agora, em “A Espada e a Azagaia”, o segundo volume da trilogia, o extraordinário cultivador do português com delicioso sabor moçambicano, como eu disse antes, volta à morte em África. Diz um dos seus personagens:
«Aprendi que há uma diferença fundamental no modo como os brancos e negros tratam os falecidos. Nós, os negros, lidamos com os mortos. Os brancos lidam com a morte. Foi esse desencontro que Germano enfrentou ao enterrar o cantineiro Francelino Sardinha. Aquela cerimónia de despedida era um modo de pedir licença à morte para esquecer o morto.»
Antes, no primeiro volume da trilogia, Mia Couto fizera uma homenagem aos mortos que as injustiças e as desumanidades condenam a fazerem apenas parte de estatísticas e ocorrências históricas anónimas — alguns se salvarão pelo umbigo-testemunho dos seus familiares vindouros:
«A diferença entre a Guerra e a Paz é a seguinte: na Guerra, os pobres são os primeiros a serem mortos; na Paz, os pobres são os primeiros a morrer.
Para nós, mulheres, há ainda uma outra diferença: na Guerra, passamos a ser violadas por quem não conhecemos.»
A mulher. A mulher africana. Será que alguém alguma vez a cantou, a louvou, a mostrou como Mia Couto?...

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