domingo, 9 de março de 2014

"Qual a origem do sucesso da espécie humana?"

 Psicologia - Frase da semana, 09mar14, "Qual a origem do sucesso da espécie humana?"


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2012/11/mia-couto-professorbiologopoeta-e.html
Qual a origem do sucesso da espécie humana?
Mia Couto, tendo em mente o terreno da sua nacionalidade - Moçambique - afirma:
"(...) Essa habilidade em produzir diversidade, esse é o segredo da nossa vitalidade e das nossas artes de sobrevivência. (...)"

Um texto extraordinário a falar-nos de identidade e alteridade; discriminação e exclusão; estereótipos e preconceitos; criar, viver e morrer. Ser em harmonia com todas as formas e manifestações de vida.
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POR UM MUNDO ESCULTURADO
(Mia Couto, Pensatempos, 2005, pp. 155-7)
Não existe alternativa: a globalização começou com o primeiro homem. O primeiro homem (se é que alguma vez existiu «um primeiro» homem) era já a humanidade inteira.
Essa humanidade produziu infinitas respostas adaptativas. O que podemos fazer, nos dias de hoje, é responder à globalização desumanizante com outra globalização, feita à nossa maneira e com os nossos propósitos. Não tanto para contrapor. Mas para criar um mundo plural em que todos possam mundializar e ser mundializados. Sem hegemonia, sem dominação. Um mundo que escuta as vozes diversas, em que todos são, em simultâneo, centro e periferia.
Só há um caminho. Que não é o da imposição. Mas o da sedução. Os outros necessitam conhecer-nos. Porque até aqui «eles» conhecem uma miragem. O nosso retrato - o retrato feito pelos «outros» - foi produzido pela sedimentação de estereótipos. Pior do que a ignorância é essa presunção de saber. O que se globalizou foi, antes de mais, essa ignorância disfarçada de arrogância. Não é o rosto mas a máscara que se veicula no retrato.
A questão é, portanto, a de um outro conhecimento. Se os outros nos conhecerem, se escutarem a nossa voz e, sobretudo, se encontrarem nessa descoberta um motivo de prazer, só então estaremos criando esse território da diversidade e da particularidade.
O problema parece ser que o de que nós próprios – os do Terceiro Mundo – nos conhecemos mal. Mais grave ainda: muitos de nós nos olhamos com os olhos dos outros. Um velho ditado africano avisa: não necessitamos de espelho para olhar o que trazemos no pulso. A visão que temos da nossa História e das nossas dinâmicas não foi por nós construída. Não é nossa. Pedimos emprestado aos outros a lógica que levou à nossa própria exclusão e à mistificação de nosso mundo periférico. Temos de aprender a pensar e a sentir de acordo com uma racionalidade que seja nossa e que exprima a nossa individualidade.
Fomos empurrados para definir aquilo que se chamam «identidades». Deram-nos para isso um espelho viciado. Só parece refletir a “nossa” 'imagem porque o nosso olhar foi educado identificarmo-nos de uma certa maneira. O espelho deforma o que temos amarrado no pulso. Pior que isso: amarra-nos o pulso. E aprisiona o olhar. Onde deveríamos ver dinâmicas vislumbramos essências, onde deveríamos descobrir processos apenas notamos imobilidades.
Em vez de tirarmos proveito das mestiçagens que historicamente fomos produzindo, contentámo-nos com essa ilusão estéril que é a procura de identidades «puras». Trocamos um namoro produtivo por uma cruzada infecunda. Em nome da ciência se esqueceram outras sabedorias, outras aproximações. A ciência se foi convertendo em algo muito pouco científico, uma acomodada certificação daquilo que se pensa ser a «realidade». Perdeu-se inquietação, arrojo e, sobretudo, perdeu-se a disponibilidade para experimentar outras vias de conhecimento.
No que este projeto deste grupo de cientistas sociais acredita é na possibilidade de uma ciência plural que aceite outros caminhos para se chegar a algo que deve ser entendido sempre de modo relacional e contextual – a verdade. Para isso, é preciso que nos deixemos encantar com a descoberta que fizermos das nossas próprias realidades em movimento.
Sou biólogo por formação. Os que estudam a evolução da nossa espécie sabem que não foi exatamente a inteligência que nos fez resistir à extinção. A glorificação do saber que se consagrou na forma como a nós mesmos nos designamos enquanto espécie traduz apenas uma parte da verdade.
A capacidade de produzir diversidade genética foi, sim, a caraterística humana que mais e melhor nos permitiu sobreviver. O sermos suficientemente diferentes entre nós mesmos (e as diferenças de uma para outra geração) ofereceu à evolução um leque de escolhas genéticas e produziu respostas adaptativas suficientemente diversas para que a Vida pudesse sempre escolher. Demos essa liberdade à Vida.
Essa habilidade em produzir diversidade, esse é o segredo da nossa vitalidade e das nossas artes de sobrevivência. Temos que saber manter essa capacidade – agora no plano cultural e civilizacional – para respondermos às novas ameaças que sobre todos nós pesam. As saídas que nos restam pedem-nos não o olhar do lince mas o olhar composto da mosca.
(Texto para o livro Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social, organizado por Boaventura Sousa Santos e Teresa Cruz e Silva, e publicado pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, março de 2005)




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